sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Partida


Partida
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
(...)

A minha alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se, entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus 
(...)

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
(...)

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
(...)

Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de sutil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

(...)

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'
https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro