sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Partida


Partida
Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
(...)

A minha alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se, entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a força de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul à busca da beleza.

É subir, é subir além dos céus 
(...)

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
(...)

É suscitar cores endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
(...)

Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longínqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de sutil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

(...)

Mário de Sá-Carneiro, in 'Dispersão'
https://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro


sábado, 30 de abril de 2016

A Justiça



Assisti ao debate no Senado federal sobre a admissibilidade do Processo de Impeachment da Presidente da República.

Ficou evidenciado, nas intervenções, que os medíocres raciocinam até onde lhes convém. Todavia, uma vez separado o joio do trigo, revela-se a existência de algumas mentes brilhantes, em lados políticos opostos, dando sentido à arte da interpretação jurídica.

A interpretação é a mais antiga atividade do jurista (os primeiros foram chamados de interpres, conforme Cícero), no entanto, não existe consenso sobre os métodos, as fontes e os resultados da interpretação.

A rigor, os métodos de interpretação não oferecem um resultado que seja o único correto. Na verdade, a hermenêutica  jurídica é ineficiente ao tentar oferecer o exato significado de uma norma. Pode apenas oferecer suas possíveis significações. Assim, o aplicador do Direito, ao aplicar uma das várias interpretações possíveis, na verdade, realiza um ato de criação normativa impregnado de sua própria vontade. E no contexto do debate no Senado Federal, a vontade subjacente a cada interpretação emanada tinha traços evidentemente ideológicos.

Na minha perspectiva de leigo, estou cada vez convencido de que nenhum dos métodos, processos ou elementos de interpretação é capaz de oferecer um resultado seguro, objetivo, capaz de evitar fundadas controvérsias.

Assim, dada a natureza da Casa onde ocorreu o debate, uma vez inaugurada a controvérsia, parece que o único caminho que se apresenta é a vontade política, exercida à luz de um mundo transdisciplinar, interligado e abrangente.


Todavia, essa vontade pode até se afastar ligeiramente do Direito, mas nunca da Justiça.